A desatinada desativa, densa a água na tina, de tanto, desanima...
Eu abro meus olhos e sinto ainda a brisa de sonho. O ar parece estar denso, como se eu estivesse no fundo do mar. Meus movimentos todos pesados, eu minimizo todas as minhas tarefas matinais e faço apenas o essencial, pois até amarrar o cadarço do meu tênis parece um grande fardo, talvez por isso eu raramente amarro, colocando para dentro do tênis.
E começo a lembrar de tantas vezes que estou andando na rua e alguém me diz:
Hei! Seu cadarço desamarrou. Eu digo: Obrigado! E faço o gesto de quem vai amarrar, mas de novo eu apenas o coloco para dentro do tênis, e aí eu digo em pensamento (é possível dizer em pensamento?) como se respondesse a pessoa:
Na verdade, meu cadarço não desamarrou, eu nem havia amarrado.
Lembrar disso me soa engraçado, e quando eu ameaço um leve sorriso, eu percebo que estou começando a ficar atrasado.
Eu queria mesmo era ter uma desculpa bem eficiente para não ter que levantar da cama. Penso em duas ou três, e penso também se teria criatividade suficiente para arranjar uma desculpa boa pra não sair da cama, e que associasse ao fato de eu nunca amarrar o cadarço.
Me desculpe, eu não poderei sair da cama hoje. Alguém deu um nó nos cadarços do meu tênis, e eu não poderei andar com eles assim.
Sim! Eu poderia desamarra-los. Eu juro que tentei muito, mas parece que a pessoa que deu este nó, estava interessada que eu não conseguisse desata-lo, pois eu pude notar que o cadarço está molhado. E é praticamente impossível desatar um nó molhado. Não, eu não estou inventando esta informação. Eu assisti em um documentário, que este nó simples, é o menos usado pelos marinheiros, pois justamente se for submetido a muita tensão, e molhado, é quase impossível de ser desatado.
Não é uma desculpa aceitável, mas pelo menos tem argumentação plausível e elaborada.
Diante da leve sensação de satisfação de ter encontrado a associação da desculpa para não sair da cama e o cadarço desamarrado, eu já noto que agora não estou mais começando a ficar atrasado, estou de fato.
Eu sempre acordo muito antes do tempo e sempre saio atrasado.
Essa maratona de pensamentos aleatórios, são parte de minha rotina. Se eu sair sem passar por esse ritual, eu saio com a impressão que esqueci de algo.
Claro que, algumas vezes, não é impressão, eu esqueço algo. Certo, não é algumas vezes, eu sempre esqueço algo. Eu até comecei a fazer a prática de colocar entre todas as coisas que eu preciso separar para sair de casa, do que vou precisar usar durante o dia, eu coloco algo que não vou precisar e deixo ela em algum lugar dizendo, eu não posso esquecer de levar isto amanhã. Mesmo que eu não vá precisar daquilo. É uma maneira para ver se meu cérebro escolhe aquilo para eu esquecer naquele dia, e aí eu consigo não esquecer de nada que eu vá precisar.
Funciona?Dificilmente. Na maioria das vezes eu levo aquilo que não vou precisar e esqueço algo que precisaria. Acho que meu cérebro diz (cérebro diz?). Que graça tem esquecer algo que não vai precisar.
Enquanto eu começo a fazer a lista na minha cabeça daquilo que eu preciso levar, mesmo que deixei separado, ainda na esperança de que não esqueça de nada, eu vou até o espelho para dar aquela última ajustada. Verificar se não tem nada de errado. Tudo está errado.
Mas pelo menos eu verifico se o tudo, que está errado, é o mesmo que estava errado, desde de a ultima vez que me olhei no espelho, ou se tem algo novo de errado.
Olhar-se no espelho, pra mim, é sempre engraçado, algo impossível de se fazer, e não se perguntar, toda a vez. Que tanto eu fiz de tão errado para atingir este estado lastimável?
Uma pergunta retórica, meu pensamento diz (diz?)
Eu tenho uma leve noção do eu fiz de errado, na verdade, eu posso separar em categorias, datas, acontecimentos, intrapessoais, interpessoais, pequenos, grandes, pouca escala, grande escala, quantidades, relevância, e por aí vai...
Porém eu sei que essa pergunta é uma pegadinha de mim mesmo, pois sabendo que esta é uma questão que levaria dias de respostas, eu apenas digo a mim mesmo. (dizer a mim mesmo é possível). É um papo que vai precisar de tempo, portanto hoje não vai dar, você já está bem atrasado. E talvez essa seja uma pergunta, que faço todos os dias, mesmo que resignado, para parar de pensar tanto e sair logo. Ficar pensando em coisas aleatórias, chega até ter um charme, pode até ser material para sentar e escrever, tem chance até de ficar bonito, se tiver alguma prática na poesia ou prosa, dentro das gavetas trancadas desta melancolia, mesmo diante de sua casca ainda fina dos assuntos fúteis.
Mas é só pensar na profundidade de nossas angústias, ou ter que refletir e pensar nos caminhos que nos levaram até aqui. Ahhh! É pauta para fugir, e parar de pensar tanto.
A pessoa que acho mais difícil de encarar e falar a verdade na cara, sem medo, sou eu mesmo.
Vou até a porta, percebo que não sei onde coloquei minha chave, procuro até achar.
Isso pode levar de 1 minuto até meia hora.
Antes de pôr o pé pra fora, faço minha prece diária:
“A máscara de cada dia, me dê hoje, para fingir que não acho que o ser humano é o ser mais desprezível da terra, que deveria ser extinto, ou que na verdade nunca deveria ter sido criado. Nem na terra e nem no céu.
Não me deixe cair em tentação de uma atitude drástica, mesmo diante de nossas maldades, violências, egoísmos, ignorâncias, e desprezo para com nossos semelhantes, mesmo sabendo que ainda somos o único animal a possuir o encéfalo desenvolvido ao ponto de poder raciocinar o pensamento. Por que tão pouco o fazemos?
Se existes mesmo, ser inanimado, invisível, por qual motivo tanto poder a um ser tão pouco merecedor? Me parece mais crível, que fomos nós é que o criamos.
Para acreditarmos em uma possível remissão pós vida, por tanto se foi eu quem o criou, eu peço a mim mesmo o perdão, e não perdoo. Amém”.
Prece feita, eu caminho dizendo, nem tomei ainda um café, o dia está apenas começando. Caminho até o ponto de ônibus na esperança de que não tenha ninguém encostado nele, para que eu possa fazê-lo.
E enquanto espero o ônibus, vou checando se estou com o bilhete, e se lembrei de deixar pelo menos uma passagem carregada nele, se não, se tenho algum dinheiro na carteira.
Será bem provável, que encostará alguém do meu lado, e me dirá- Bom dia!
Educadamente eu responderei, e está pessoa me dirá. “Desculpe! Mas o cadarço do seu tênis desamarrou, enquanto eu abaixo para coloca-lo de novo pra dentro, desta vez não vou discordar dizendo pra meus pensamentos (se concluímos que pensamento diz!) que na verdade, nem estava amarrado.
Vou pensar sozinho - Poderia estar com um nó simples entre os cadarços, apertados e molhados.
Aliás,seria boa definição sobre a vida- Um nó, mesmo simples, mas apertado e molhado.
Impossível de desatar.
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