Em um Futuro utópico pós pandêmico, Amália acorda para mais um dia de sua rotina de fim de semana. Porém esta data tem um sabor especial, pois é a comemoração de 5 anos em que o mundo descobriu a Vacina contra a Covid-19 que assolou a Terra em 2020, com um contágio viral, que levou a óbito quase 1 milhão de pessoas por todo o mundo. Diante deste dia específico, Amália se pega a refletir em como estamos vivendo, agindo e se relacionando em relação aos reflexos, não somente do contágio do vírus, como da quarentena, e do isolamento social que tivemos que cumprir por meses, durante a pandemia mundial.
Todos os dias, mesmo em dias que não precisa ir de imediato a um compromisso, Amália sempre coloca seu relógio para despertar 15 minutos antes do horário, pois antes de sair da cama, ela gosta de cumprir um ritual que acostumou a fazer.
Ela disse que aprendeu isso num filme americano bobo de adolescente, “As Patricinhas de Beverly Hills”. Ela pega um dicionário que fica ao lado da cama e procura uma palavra que ainda não conhece, cada dia uma palavra que começa com uma letra diferente do alfabeto.
No filme, a Patricinha ensina a amiga a aprender uma palavra diferente por dia e durante o dia buscar uma forma de aplicar a palavra. Não necessariamente fazer isso, logo quando acorda, mas Amália pensou que se fosse ter que buscar durante o dia uma maneira de aplica-la, não havia melhor hora que fazer logo quando acorda. Tem sua lógica.
A letra do dia era L, deixando as folhas correrem um pouco, parou, e na palavra que bateu o olho, se não conhecesse, seria a palavra usada, a palavra então era Legação.
Legação- Direito inerente de um Estado soberano, de enviar seu agente diplomático que o represente em outro Estados. Referente ao legado, ou a função da missão que lhe foi atribuída.
A dificuldade agora é encontrar um modo de aplicar essa palavra durante o dia, Amália buscava cumprir outra regra que a Patricinha havia atribuído no filme pra essa tarefa, que era, não pode forçar o uso da palavra, ela tinha que encontrar uma forma orgânica para aplicar.
Feito este ritual diário, ainda antes mesmo de sair da cama, Amália finalmente levanta-se, como todos os dias, escova os dentes no chuveiro mesmo, ao sair do banho limpa o espelho e sem enxergar direito da aquela secada no cabelo e enrola com a toalha.
Sai do banheiro, abre o guarda roupa para escolher o que vestir, vai até o rádio e liga, sintonizando numa rádio que fale um pouco das notícias, e volta para o guarda roupa.
Booooom diaaaaa! No rádio.
Bom dia! Amália sempre responde.
Rádio- Hoje é sábado e bom trabalho para quem for trabalhar, boa folga para quem mesmo descansando gosta de acordar mais cedo para aproveitar o dia! Aproveitamos esse começo de sábado, dia 06 de novembro de 2025, e se vocês QUERIDES ouvintes não sabem, ou nem lembravam mais, no dia de hoje completa exatamente 5 anos que foi declarada a descoberta da vacina contra o Covid-19, isso mesmo, ela foi descoberta no dia 06 de novembro de 2020 e vamos TODES aproveitar o dia para celebrar com aqueles que amamos, este dia tão importante em todo o mundo. E você que tem um bebê, recém-nascido, não esqueça que nos primeiros 6 meses, devemos levar nossas crianças para tomar a vacina ANTI-CORONA, que agora é aplicada gratuitamente em todos os postos de saúde, é muito importante que você leve seu bebezinho, pois não queremos que este mau nos assole novamente.
Amália já havia lembrado ontem deste dia da comemoração aos 5 anos da descoberta da vacina, mas o que a intrigou na fala desse radialista, que a fez parar o que estava fazendo e prestar atenção, foi que pela primeira vez, nunca havia ouvido antes, o radialista disse os pronomes para se referir ao coletivo, em linguagem neutra, QUERIDES e TODES. Há bastante tempo que Amália houve as notícias pela manhã e pela primeira vez ouviu o pronome dito assim, sem definir o gênero.
Poderia passar desapercebidamente, mas Amália sabia que aquele momento era importante, poderia se tratar de algo pequeno, mas era uma conquista importante, pois se trata de uma conquista para vencermos os vícios de linguagem, que como, todas as relações da sociedade em geral, historicamente são machistas.
Amália lembrou de tantas vezes na sala de aula, de onde ela se formou na universidade, que mesmo em sua turma, com 10 alunas mulheres e 3 homens, professoras/os sempre usavam, queridos, alunos, todos, juntos, e que sempre era preciso lembra-lhes que as mulheres estavam lá e que eram maioria, isso ainda sem falar do quanto, prováveis ALUNES não binários, ou transexuais, e/ou Travestis, nem eram NOTADES, ou nem se quer tinham acesso aquele local, por serem o que são. Pode parecer apenas uma frase, jogada em uma fala, Amália e as lágrimas que caiam em seu rosto, sabiam que não era simplesmente isso.
Enquanto sentia o cheiro de café coado, ansiando por aquele gole quentinho queimando a garganta, Amélia se animava com a hora de contar a seus AMIGUES, o que ouvira no Rádio.
Como já era um pacto, se encontravam, pelo menos de duas em duas semanas, no sábado, para conversarem presencialmente, que seja até ao cair da tarde, se tiverem compromissos SEPARADES depois, reflexos da pandemia de 5 anos atrás. Naquele dia especial, eles iriam esticar para uma pequena festinha na casa da Anna e do Maicon.
As melhores festas sempre foram por lá.
Amália percebeu então, que já faz um tempo que, quando ela sabia que iria encontrar o pessoal, ela nem falava com eles por celular. Deixava para dizer e ouvir tudo o que tinham pra contar presencialmente, bateu um leve ar de felicidade por saber que estava agindo assim ultimamente, sem nem mesmo perceber.
Como ela já sabia que iria sair no período da tarde, pensou em dar aquela faxina boa na casa, ainda de manhã, antes que sua mãe saísse da cama. A mãe de Amália, Cecília, ultimamente andava adoentada e sempre cansada, já com uma certa idade. As duas estavam morando juntas novamente desde a pandemia do Covid-19 em 2020
Na época, Amália estava morando sozinha, pois sempre estava cercada pelos AMIGUES e a casa nunca ficava sozinha, e a mãe dela que na ocasião estava bem, já morava naquela casa, Amália nunca conheceu seu pai, mas sempre que falam do pai dela, ela repetia:
História clichê do pai que foi comprar cigarro e nunca mais voltou, nem quero perder tempo contando.
Antes da quarentena, esse era um bom trato para elas, pois com tanta gente chegando e saindo de casa, Amália poderia deixar sua mãe tranquila, e alugou algo perto do trabalho, claro que, sempre que podia na semana Amália dormia na sua mãe e ficava muitas vezes com ela para não sentir-se sozinha.
Quando houve a Pandemia mundial, no início, Amália deixou uma amiga sublocando onde ela morava e ficou toda a quarentena com sua mãe. Quase no fim da quarentena, Amália deixou o aluguel de vez e quis ficar com sua mãe, passando alguns anos, ela percebeu que sua mãe já não andava bem, sempre calada pelos cantos. Hoje Amália conversa com ela o essencial, muitas vezes nem houve respostas, ela não questiona tanto pois sabe que sua mãe é de idade avançada e que a velhice vem para TODES, algo que tem buscado aprender a lidar.
Em sua cabeça, ela se prepara para o inevitável, até já ouviu seus AMIGUES comentando uma vez, sem que percebessem que ela ouvia, que Cecília já passaria para uma outra, logo em breve, mas não quiseram comentar com ela o assunto, pois deveriam ter medo de ser um Tabu.
Decidida a deixar a casa toda limpa, Amália deixou sua roupa que havia escolhido para passar o dia pendurada na porta do Guarda Roupa e se vestiu com aqueles bons e velhos trapos de usar para faxina. Antes de começar o serviço, uma boa música no velho rádio, caia bem.
Escolheu o samba de Maria Carolina de Jesus, gravado em um CD, das antigas.
O rádio de Amália era um desses toca CD, ela tinha muitos CDs originais e outros, mesmos os que não fossem CD original do artista, como o caso, das canções de Maria Carolina de Jesus, ela salvou em um CD. Em casa ela só colocava música de CDs.
Teve um dia que Anna foi até sua casa e mexendo em todos os CDs perguntava, como ela conseguia gostar tanto dessa tecnologia arcaica como toca CDs.
Amália dizia que queria era mesmo investir em Disco LP, porém toca disco era mais difícil, e os discos então, para manter uma coleção, alguém que não tinha já muitos guardados, muita grana envolvida, preferiu os CDS, que também já era coisa ultrapassada.
Nesse dia Anna organizou toda a sua prateleira, fez um belo enfeite na estante com o nome de Amélia, até sua mãe Cecília esboçou um belo sorriso, foi um dia que ficou marcado para elas.
Amália estava feliz naquele dia, sentia que as coisas estavam bem e ainda melhorariam muito, por isso escolheu Maria Carolina de Jesus, ela dizia que ela lembrava sua Mãe, a guerreira que foi, e a veia Artística que tinham. Cecília, mãe de Amália escrevia poesias em seus dias de inspirações, o que a muito não o fazia.
Enquanto Amália estava limpando o banheiro, e ouvindo Maria Carolina de Jesus, Cecília se levantou e tirou o CD, guardou no lugar e olhou para todo o cômodo da sala, como se quisesse dizer algo em voz alta, mas após isso, simplesmente voltou ao quarto.
Lá de dentro do banheiro mesmo, Amália ouviu que sua mãe havia tirado o CD, ela só esboçou um olhar entristecido, mas não reagiu, como se fosse algo que de vez em quando já acontecia.
A situação e a premonição do que viria com sua mãe, era algo que a deixava triste, mas ela já estava se conformando, e naquele dia, em especial, ela não queria se chatear, pois sentia que além do dia ter começado com boas notícias, havia algo melhor por vir.
Seu coração batia mais forte sempre que ela pensava em como seria seu dia de sábado.
Ao passar a manhã na limpeza, Amália percebeu que aquela casa, a cada vez que ela decidia parar para fazer uma grande limpeza, estava cada vez mais suja e empoeirada.
Casa velha da nessas coisas, pensava, qualquer dia me acabo nessa poeira toda.
Casa limpa e as coisas em seu devido lugar, Amália se aprontava para ir até o centro almoçar.
Todo sábado Roberta, EX namorada de Amália, almoçava no mesmo lugar, SUJINHO que fica na Consolação, não a Hamburgueria, que só abre no período da noite, mas a COSTELARIA, que dizem ser a melhor de São Paulo, desde os anos 60. Aliás, SUJINHO tem esse nome não por que é sujo, mas por que nessa época, quando começou, o restaurante era um bar, que servia café da manhã e almoço, o bar era tão lotado, e com poucos garçons, no começo. Esses garçons trabalhavam tanto que entre as refeições, iam juntando a sujeira do chão para recolher na pausa entre uma refeição e outra, as pessoas gostavam tanto da comida e sempre que combinavam de ir para lá diziam, vamos até o SUJINHO.
O nome pegou, quando os donos contrataram mais garçons para não ter esse problema, e o chão estar mais limpo, o nome já havia popularizado e não teve como mudar.
Contei essa história verídica a vocês, pois Amália, quando conheceu Roberta, sempre contava, toda vez que iam até lá, ou quando aparecia alguém novo no rolê, e surgia o assunto SUJINHO, contava de novo. Roberta resmunga até hoje, pois herdou contar a história de Amália, como não estão mais juntas, ela também dá seu jeito de espalhar a origem de SUJINHO para o mundo.
Mesmo não sendo mais um casal, sabendo que Roberta, agora, almoça todos os sábados no SUJINHO, alguns desses sábados Amália encontra Roberta por lá, a relação delas ainda é boa.
Sabe aquele casal que terminaram a relação e ninguém sabe direito a razão do termino, pois ainda se combinam tão bem, é isso, ninguém toca no assunto, pois sabem que é coisa delas.
Roberta também iria para a festinha de Anna e Maicon, por isso Amália decidiu encontra-la e irem juntas a festa, assim poderiam colocar o assunto em dia. Embora nos últimos tempos
Amália sentia que quando se encontravam, Roberta era bastante ouvinte de seus problemas, mais do que falava, mas não sabia se esse era um problema de fato, Amália sempre foi mais faladeira que Roberta. Amália nem percebeu o tempo passar enquanto se arrumava e atrasada pegou o que tinha que pegar e foi apenas na porta do quarto de sua mãe para dar um tchau.
Baixinho ela falou. Tchau mãe, vai ficar tudo bem, não sei explicar, mas sinto que hoje vai ser um dia especial, estou com a sensação de que coisas novas e melhores estão por vir.
Já acostumada dizer algo sem a resposta de sua mãe, estava saindo quando Cecilia disse:
Cecília- Eu sei que você está aí filha, quero te agradecer por tudo, me sinto bem hoje, como já não me sentia a um tempo. Obrigado por ter colocado Maria Carolina de Jesus.
Amália chorou, e percebeu que antes mesmo da hora do almoço já havia chorado duas vezes, isso somente reforçava o quanto esse dia estava diferenciado e que coisas ainda melhores viriam até o fim deste sábado de comemoração.
Na rua, Amália percebeu que ultimamente as pessoas saiam mais no portão, cumprimentavam umas as outras, notavam-se, algumas vezes até conversavam sobre qualquer coisa.
No ponto de ônibus, viu quando uma senhora mexia nas coisas e procurava seu bilhete de aposentada para passar. Ao perceber que tinha esquecido estava decidida a voltar para buscar.
Amália já iria se prontificar a passar para ela quando uma outra menina perguntou:
Menina - A senhora vai precisar de duas passagens?
Sim. Respondeu a Senhora
Menina- Toma esses 10 reais, que aí não precisa voltar, nosso ônibus já vai passar, e se a senhora perder vai ter que esperar até o próximo daqui 30 minutos.
A Senhora agradeceu a menina e TODES ficaram sorrindo, mesmo que calados naquele lugar, até que veio o ônibus.
Quando Amália já estava na estação de Trem, percebeu que nem havia pego o celular, não se importou, estava ao encontro das pessoas que lhe interessavam de fato e não precisaria do celular para falar com elas, pensou que poderia ligar mais a noite para a casa da sua mãe, para saber se tudo estava bem, ficou tentando lembrar o número do telefone da casa.
Ao tentar recordar o número concentrada, Amália começou a notar as pessoas, percebeu que TODES ficavam de olho nas pessoas que precisavam de acento preferencial, para não deixar ninguém em pé, as mulheres buscavam se cuidar umas das outras contra os assediadores e não tinham medo de enfrentar e denunciar.
Seu caminho, entre o trem até a linha verde e depois o Metrô até a Consolação, era um tanto quanto longo, e nesse percurso todo, começou a reparar que não mais parecia que TODES estavam apenas cuidando de si, com seus aparelhos e fones no ouvido, mas que interagiam e tinham esses cuidados necessários, uns com os OUTRES.
Amália sabia, a cada segundo que vivia de seu sábado que aquele não era um dia comum, e que não sabia se era apenas pelo fato de ser o dia da comemoração dos 5 anos da descoberta da vacina contra Covid-19, ou se realmente era um dia predestinado a algo muito maior, mas seu coração se alegrava cada vez mais.
Ela subiu cantarolando e dançando até chegar ao SUJINHO, quando foi chegando, percebeu que Roberta já havia comido e estava saindo, correu para alcança-la, pelo menos para irem juntas até a casa de Anna e Maicon. Ela não questionou, pois sabia que havia se atrasado muito.
Como de praxe, elas desceram a Consolação com Roberta calada e Amália contando a ela tudo o que já havia acontecido hoje e como ela achava que o dia era especial.
Anna e Maicon moravam próximo da Praça Roosevelt, quando já estavam chegando, Amália pediu para Roberta ir na frente pois queria buscar algo lá na Roosevelt.
Ela não queria chegar de mãos abanando quando chegasse na casa de Anna e Maicon, foi até lá ver se encontra com alguns daqueles marreteiros que ficam por ali vendendo coisas.
Na verdade, ela conheceu nos últimos anos uma cigana, que sempre estava com sua barraca por ali e toda a vez que ela chegava em sua barraca a cigana já separava algo que ela mesma tinha escolhido e entregava a Amália, nunca cobrava nada. Amália gostava de encontrar essa cigana pois a fazia se sentir especial, todas essas vezes ela recebia essa lembrança da cigana e a cigana lhe dizia algumas coisas estranhas que geralmente ela não entendia nada.
Amália estava curiosa para saber o que a Cigana iria lhe dizer hoje, já pensando que era um dia especial, ao mesmo tempo deu aquele medinho de ser algo que ela não gostasse.
Ficou torcendo para pelo menos ser algo que não entendesse nada, assim ficaria na mesma.
Já na Roosevelt ela notou que tinha uma galera do pessoal dos grupos de teatro e da escola de SP de Teatro que tinha ali, fazendo um mutirão de entrega de marmitex grátis na praça, para pessoas que estavam em condições de rua. Foi se inteirar do que se tratava, soube que já desde o começo do ano eles estavam fazendo esse mutirão, pelo menos todo sábado.
Formava uma fila enorme de pessoas em condições de rua de toda a cidade e até mesmo os Skatistas que sempre estavam por ali, ficam ajudando a distribuir para que pudessem entregar logo. Algumas pessoas disseram que gente de todo lugar estava doando valores e alimentos e as pessoas estavam organizando para que este trabalho pudesse ser durante toda a semana e espalhados em outros locais para não criar o tumulto em um lugar só.
Amália ficou por ali um tempo e conseguiu até ouvir que já estavam buscando um prédio da cidade para que esse serviço fosse organizado de maneira que essas pessoas em condições de rua que quisessem passar a noite em um lugar de abrigo, e que a prefeitura tinha se articulado, com pressão desses Artistas para poder criar um trabalho em mais de um desses prédios abandonados que tem em São Paulo, onde além de abrigo e alimento as pessoas que quisessem ser realocadas, poderiam encontrar algum trabalho e também as que estavam passando pelo vício de bebidas e drogas, poderiam ser encaminhadas para um tratamento, se quisessem.
Amália não entendia como que a prefeitura do nada estava querendo organizar-se dessa maneira, mas alguém contou toda a história e disse que uma frente popular que começou tocada por esses artistas de rua da cidade, mas que depois tomou uma proporção maior com a população em geral cobrando e mostrando as possibilidades, que a prefeitura ficou sem saída para não fazê-lo.
Cada coisa que Amália ia vendo de situações que pareciam estar melhores, ela sentia o quanto aquilo tudo tinha um significado importante, e se tratando daquele dia em especial, seu coração agora já batia em ritmo mais acelerado de alegria.
Foi quando ela avistou a Cigana de longe, que já estava acenando para ela, também com um olhar feliz, as duas se deram as mãos e ficaram por um minuto se olhando felizes.
A cigana disse então: Estou aguardando você aparecer já tem alguns dias, parece que hoje é a ultima vez que nos encontramos.
Amália sem entender- Mas você não vai mais ficar aqui pela Roosevelt?
Cigana- O que tinha para fazer aqui, já está feito. Precisava somente lhe entregar este último presente, por isso lhe esperei.
O presente era um colar com uma Coruja como totem.
Cigana- A coruja nesse caso, representa toda a sua sabedoria, furtividade, sigilo, silêncio, movimentação rápida e visão aguçada. A habilidade de enxergar por trás das máscaras, vendo o que realmente se esconde sob a superfície, de avisar sobre presságios, mudando de forma. Representa a ligação entre o mundo escuro e invisível e o mundo da luz. Também o conforto com a própria escuridão, com a magia da lua, com a liberdade, com as decepções, com a compreensão, visões e presságios.
Você vai viver algo hoje que ainda nunca tinha visto, mas seu corpo e espirito estão prontos.
Quando chegar o momento, apenas contemple e você vai saber o porquê disso tudo.
Só posso te dizer isso.
Amália olhou seu presente, e tinha entendido o significado da Coruja, embora não tinha entendido nada sobre as outras coisas, mesmo que fazendo todo sentido, já que desde o momento que ouviu as palavras do Radialista ela tem sentido algo especial para aquele dia, que iria muito mais além de uma comemoração sobre a descoberta da vacina para o Corona vírus.
A cigana estava já com suas coisas arrumadas, abraçou Amália, sem dizer mais nada, foi se afastando. Amália ficou olhando seu presente ainda por algum tempo, pensando nas coisas que a cigana tinha dito.
Contemplou mais uma vez, tudo o que estava acontecendo ao seu redor na praça e foi descendo a rua em rumo da casa de Anna e Maicon.
No final da Roosevelt ela percebeu que saiu de lá com um presente para ela, mas que não havia achado nada que pudesse dar para Anna e Maicon, já que a Coruja era algo que ela não iria se desfazer. Se conformou, Anna e Maicon não vão ficar chateados.
Amália chegou até o AP de Anna e Maicon, sempre quando eram essas ocasiões, subiam direto, o porteiro já lhes conhecia e a porta ficava aberta, assim ninguém precisava ficar tocando campainha, a não ser que fosse alguém que o porteiro ainda não conhecia, então ele interfonava.
Amália entrou e TODES estavam em roda no chão da sala com uma taça, ou copo na mão, cada qual com sua bebida de preferência, e quando ela os viu, disseram em coro:
TODES - UM BRINDE A AMÁLIA!
Ela achou que o TIME de estarem a esperando era perfeito de mais para um grupo tão desorganizado, quando eles foram dizendo.
Anna - Amália iria adorar nosso TIME perfeito, ela sempre reclamou da nossa desorganização para combinar algo JUNTES.
Amália estranhou o modo como Anna falou, não tinha notado ainda que ela já havia chegado?
Maicon- Esse dia especial, devemos guardar em memória da Amália, pois ela não se foi em vão. Queria tanto que ela pudesse ver que hoje no rádio, o narrador disse os pronomes para se referir ao coletivo, em linguagem neutra. Foi uma grande vitória isso ter sido incluído como nova regra ortográfica para língua portuguesa.
Amália queria poder parar para comemorar essa novidade que Maicon contou, mas estava atônita por não entender a razão deles falarem como se ela não estivesse ali, queria gritar e chamar a atenção de TODES, mas não conseguia, se sentia travada.
Carol era também uma das amigas do grupo e havia dado aula junto com Amália, Amália era professora de Artes numa escola da prefeitura, Carol dava aulas de Teatro
Carol- Amália teria feito uma semana inteira de comemoração com os ALUNES para celebrar essa nova regra, com toda a certeza. Olhando para Roberta Carol pergunta:
Como você está Roberta?
Roberta- Me sinto bem! Meu coração está em paz. Fiquei com a sensação de que ela estava comigo hoje, tagarelando como sempre.
Albertina também estava na roda e era a mais velha da turma, era chamada de Tina e sempre tinha as palavras de sabedoria.
Tina- As coisas estão, mesmo que aos poucos, melhorando. Quando caminhamos nas ruas, nos trens, metrôs. Na sociedade como um todo, nas prefeituras, estados e em geral.
Se as pessoas do poder, ou até algumas como um todo, não pretendem fazer nada, outras, e parece que cada vez mais a maioria, quer ser melhor, e estão olhando mais para fora de seus umbigos. Isso vai mudar o mundo.
Amália começava a entender o que ocorria, mas no momento só conseguia prestar atenção nas palavras de Tina.
Tina continuou- Querendo ou não, e infelizmente, foi preciso uma situação de Pandemia, onde quase 1 milhão de pessoas faleceram e mais de 10 milhões foram infectadas. No Brasil onde 1 milhão e meio foram infectados e quase 100 mil se foram, para que as pessoas começassem, e apenas começassem a ver que muita coisa deveria ser refeita e que de fato erramos muito em todas as nossas histórias e trajetos. Amália era uma dessas vítimas do COVID-19.
Estamos aqui hoje, muito mais até que para celebrar a vacina que pôde parar essas mortes até o dia 06 de novembro de 2020.
Estamos aqui para mostrar a Amália, que sua morte não foi em vão. Esse brinde que fizemos a ela, não foi somente para celebrar a pessoa incrível com muitas razões para ser lembrada e celebrada em todos os dias.
Mas para mostrar a ela, e dizer que pode viver seu novo plano em paz.
Já que muitas vezes nesses 5 anos dizemos sempre em ocasiões que por muitas vezes parecia que ela estava por lá. Quem sabe não estava mesmo.
Proponho agora levantarmos novamente nossos copos e dizermos assim:
Segue seu caminho Amália, fique em Paz, pois aqui na Terra, você cumpriu sua missão.
Toda a sua trajetória e ainda nova, aos 30 anos, ter sido vítima de Covid-19, fez parte da construção desse mundo novo que se apruma.
Você aqui já cumpriu sua... Quando Tina preparava-se para dizer, Amália sabia qual palavra ela diria, e disse junta.
Tina e Amália- Amália cumpriu sua...LEGAÇÃO.
Amália então encontrou a aplicação da palavra que aprendeu hoje, e mais que isso entendeu que todo esse tempo já não estava mais materializada, e que seu espirito estava em construção de partida. Isso explicava os dias que voavam, e cinco anos foi como se tivesse vivido 5 dias. O quanto não conseguia falar direito com as pessoas e seus turbilhões de sentimentos.
A tristeza de sua mãe e a alta percepção dela ao notar que ela estava por lá todo tempo, a sensibilidade de Roberta e não saber como foi ao certo que terminaram o relacionamento.
Tudo fazia sentido.
E agora a sua legação estava completa. Seu espirito queria ver sinais de um mundo melhor após a pandemia, a quarentena, o isolamento social e o próprio vírus que tomou sua vida.
Mesmo que em respingos, ela notou isso e pode colocar reparo nesse dia de hoje.
Amália estava com seu colar com a Coruja nas mãos, um mundo novo começou a se abrir aos seus olhos e ela foi se afastando aos poucos dali daquele apartamento.
Quando ela notou já não estava mais com o colar nas mãos e não sabia mais o que era dele.
Com o risco de ser clichê, depois disso, Amália apenas caminhou em direção da luz.
No apartamento, ao final do dia, quando estavam se despedindo, Roberta viu no chão um colar com uma Coruja e entregou a Anna
Roberta- Olha Anna o que estava no chão
Anna- Não é meu nem do Maicon, se quiser pode pegar pra você, se aparecer o dono te aviso.
Roberta- Amália que gostava de coisas de coruja, vou ficar pra mim pra lembrar dela sempre.
As famílias das pessoas que estão indo embora devido a Covid-19, com toda a certeza estão com uma dor sem fim, um vazio que jamais será preenchido. Por isso que esse conto é mais que uma prospecção. É um desejo, com a própria obrigação moral de lutar para que após essa pandemia, a quarentena, e o isolamento social, nós possamos trabalhar para um mundo melhorado, com valores redesenhados e muito amor, entre nós, e em relação ao mundo que nos sustenta e no qual vivemos.
É importante garantir que as pessoas que perderam suas vidas, não fiquem em vão.
Comments